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“A Vã Glória de Te Amar” – 1º Capítulo – (Parte 4), autoria de Mefistus

O vento ressoava-lhe ao ouvido, no meio da tarde Outonal. Por entre as artérias movimentadas da cidade nortenha, o frio tornava-se cortante e a chuva ameaçava.
Ela esperava um dia diferente, uns salpicos de sol que lhe alegrassem a alma e lhe devolvessem a confiança.
Por outro lado, pensou enquanto calcorreava o passeio esburacado, este tem,po permitia-lhe desaguar as enormes gotas de prata que tão humildemente havia segurado e escondido nos solitários olhos, ávidos de esperança.
Algo para ela era certo, não poderia continuar ” escondida”, cativa na solidão do seu pequeno quarto alugado, prensada nas letras avulsas de um diários, escrito noutro tempo e por outra alma.
Mas Vega estava certo. Demasiadamente certo. Se se adopta uma cidade, como recomeço de vida, deve-se estudá-la, entendê-la, abraçá-la e se possível, amá-la.
Quase sem se dar conta, um sorriso tímido surgiu, irrompendo os lábios massacrados pelo ar frio e pelas mazelas de uma vida de violência.
Chegara-lhe ao pensamento, a descrição da cidade, por Vega. Lembrara-se do encantamento dele pela Invicta e decidida, rumou ao Palácio de Cristal.
Os majestosos portões de ferro forjado, abertos, eram como braços estirados na recolha da sua alma e se a princípio receava entrar,acariciou a capa já gasta do diário, no bolso do casaco verde já gasto e penetrou.
Muita coisa certamente deve ter mudado desde que lhe pediram um cigarro, mas ela estava disposta a se perder, a caminhar e a observar.
Como era tudo novo agora, sem preocupações, sem riogor de horários, sem escoriações. A vida, pensou, devia ser absorvida, bebida em longos e ávidos goles. Como água no Deserto…Valiosa.
Pela primeira vez, permitiu-se uma heresia e sem contemplações, comprou um maço de cigarros. Era-lhe indiferente a cor ou a marca. Só precisava de os ter, nunca se saberia o que poderia acontecer.
Instintivamente, escolheu um banco central, perto do lago. Talvez noutros tempos, houvessem patos ou peixes prateados e doirados que a receberiam com um sorriso, ou um olhar esperançoso.
Contudo nessa altura, nessa mesma hora naquele preciso dia não havia olhares ou sorrisos a ela dirigiddos. Tudo estava deserto e desleixado.
Mesmo as plantas, mesmo as preciosas acáceas, perdiam o vigor, vergando o caule, como que escondendo o rosto de vergonha. Pacientemente ela chorou.
Não que tivesse ficado decepcionada, pois nada de novo esperava encontrar, mas ainda acalentava uma expectativa de uma certa magia.
Resignada abriu o diário. Ela tinha outras coisas para fazer, mas a Alma não a deixava pensar ou meditar:
” Faço intenções de registar a entrada do meu primeiro dia de trabalho. Não caro leitor, não me estou a desviar do propósito deste meu diário,nem tão pouco faço menção de o colocar ao corrente de todos os aspectos da minha vida. O que pretendo é esclarecer este meu trauma, esta minha inquietude de espirito, que me consome e me transtorna.
Quizera eu ser diferente, como se por acaso a minha alma fosse um quadro de lousa negra, com caracteres Divinos escrito a giz branco imaculado. Mas acontece, caro leitor que serei sempre eu, com todas as minhas virtudes e creio bastantes defeitos. Tencionava eu apagar os vestígios deste Ser saloio, de outros hábitos e formas, mas por forma não totalmente decifrável é este o meu intimo.
Como disse, o meu primeiro dia de trabalho aqui na Invicta. Tratei de conservar o meu melhor fato, as minhas melhores joias ( lânguido o homem que julga que aneis são cousas femininas) e os meus melhores sapatos. Os longos minutos de agonia, na condução da Gillette estreita e baratucha, que me fustigava o rosto. Tinha que estar decentemente apresentável e emocionado, rumei ao meu futuro 8 lou seria já o meu presente).
Humildemente avancei pacientemente os dois primeiros lanços de escada, de madeira rangente, encobertos por uma passadeira já gasta. Poderia fazer menção à rua do edificio, ás arvores, as gentes e lojas que avancei, nesta minha primeira odisseia, mas caro amigo, não o posso fazer, pois nada absorvi que não fosse o meu medo e expectativa.
Morais recebeu-me com o mesmo trato formal que usara ao telefone:
-Pois sim, aqui vai ser o seu posto de trabalho. Oh sim, caro colega, li o seu curriculo….Não vai se dar mal por aqui, garanto.
E as mãos a voar, em piruetas melancólicamente estudadas. Como se o indicador esticado a girar, qual patinadora no gelo fino, oferecesse ás palavras outra condição metafisica.
-Tenho a convicção que realmente vai ser bom aqui. Mas sabe, caro Morais, receio ainda estar ” verde”.
-Ó homem, verdes são os Marcianos. Você vai vêr. Vai ser um brinquinho. Só tem de ter cuidado com a víbora.
-A víbora?
-A chefe de redacção. Mas não se apoquente, ela ainda não mordeu nínguem.
-Morder??
-Ah por falar no diabo. Venha homem, eu apresento-lha.
O Destino quando se encarrega de ser mauzinho, de ser um dragão flamejante, transforma-nos em peões, em pedaços de frango numa frigideira. Por mais sonhos que eu tivesse, jamais calcularia ver a Glória, a minha Glória, ali!
Expectante e ameaçadora. Pronta a encarar-me e quem sabe a trucidar-me. Não me interpretem mal, mas como poderia trabalhar para uma mulher…Para aquela mulher?
De mãos humidas pelo nervosismo, lá fui encaminhado, como um condenado no corredor da morte. Imaginava que a qualquer momento, aquele ser aparentemente frágil que conhecera no Palácio, transformarse-ia numa Medusa medonha e sanguinária. Finos cristais de suor, surgiam na minha testa e os metros transformaram-se ao meu espírito em angustiantes quilómetros imaginários.
Contudo, diante dela tudo foi suave, inebriante e cativante. Soube o seu nome,decorei o seu sorriso, perdi-me naqueles olhos redondos e negros e desejei, ó como desejei, abraça-la ali mesmo e beijá-la. Não um beijo qualquer, mas um beijo à Bogart e ela a minha doce Bacall, num enlace perfeito, num enlace eterno:
-Então é você o nosso novo reforço?
-Sim, minha senhora. Efectivamente!
Glória procedeu a uma pausa, enquanto me sondava da cabeça aos pés e proferiu, num tom de voz adocicado:
-Até que enfim que começamos a ter bom gosto na selecção! Um perfeito cavalheiro.
Radiante, olhei para o ar embasbacado, diante do elogio, de Morais e sinceramente apeteceu-me dar-lhe um estalo. Ali mesmo, para calar aquela boca caluniosa. Chamar um anjo perfeito como a minha doce Glória de víbora? Ah, se fosse antigamente, era um duelo decerto.
Percebi perfeitamente o seu comentário. Se todos ali fossem como Morais, então de cavalheiros, realmente nada tinham.
Escusado será dizer, que principiei a ocupar o meu posto de trabalho moralizado e concentrado. Iria mostrar a Glória todo o meu fino talento e a minha capacidade na arte da escrita.
Coitado, como eu estava enganado.”
Aproveitando a deixa da página encardida, ela consultou o relógio de pulso e de repente dera-se conta que principiava a chover. Ela tinha que ter uma nova atitude. Não poderia esconder-se para sempre dos seus problemas e necessidades, atrás de uma escrita de alguém incógnito.
Decidida, sorriu e levantou-se do banco, com uma ideia inovadora.
Ainda não se sentia em condições para lutar por um emprego, acabara de descobrir, que nada a motivera, excepto aquele desejo repentino….E se ela escrevesse um diário?

By Mefistus

5 thoughts on ““A Vã Glória de Te Amar” – 1º Capítulo – (Parte 4), autoria de Mefistus

  1. Estava mesmo a precisar de te ler hoje.
    De todos até agora este é o meu capitulo favorito.
    Quantas vezes passei sentada no parque a ler, indiferente a quem passava, absorta nas palavras de outro alguem.
    Lindo!

  2. Uma questão?
    Arranjas a fotografia e escreves o capitulo ou vice-versa?
    Perdi a aposta no que claramente julgava fosse mais um enterro. Ou seja,o enredo parecia fraquinho, pela sinopse e magistralmente aguentas-te com uma personagem a dar o corpo e outra só no ouvido,(ou na leitura).
    Parecia algo débil a construção, mas pelo que li até agora é uma prova que as ideias que possuimos à priori, por vezes enganam.
    Numa evolução segura o romance avança, introduzindo personagens, sem ferir o conteudo do todo.
    Cá fico a ler na vontade de te apanhar em falso e acredita que te vou apanhar, porque enquanto avanças personagens e evoluis na história corres o risco de ser repetitivo.
    Nessa altura te direi. Para já, sem palavras!

  3. De ler e chorar por mais.
    “Ó homem, verdes são os Marcianos…”, gosto imenso quando dás um toque de humor em certas passagens. Como o “lágrimas de Deus em face de anjo, Amo!” do Crime, dise ele.
    Expressões que marcam, marcam e muito a leitura do conto.
    Genial Mefistus.

  4. Andava ansiosa na espera de mais desenvolvimentos. Já adotei este conto como meu,por me rever em certas partes co ele.
    A magia e o encanto,o modo como entrelaça as duas histórias, o ar sonhador num monólogo dirigido a nós leitores e a atitude dela, própria de quem procura conforto.
    O grande pormenor da compra do maço de cigarros, apesar de não fumar, elucida a vontade da personagem de querer mudar, de ser outra.
    Por fim, o ar zamgado e ofendido do cavalheiro, sobre o aparte.
    Suave, lindo, inspirador.
    Parabens

  5. uma leitura tao soft
    mas que prende, prende imensamente!
    a adorar ler este conto com duas historias la dentro…curiosa para os desenvolvimentos…
    já começo a magicar aqui na cabeça o que possa surgir, mas, como tu sempre surprendes, nao faço apostas 🙂

    sempre um prazer imenso te ler!
    🙂

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